LEITURA RECOMENDADA - LP6
Profa. Lúcia Deborah
Três fantasmas mudos para um orador luso-afónico
Mia Couto
O orador avisado faz uso de toda a estratégia para considerar o
tema da palestra como sendo do domínio do impossível. Neste caso, sucedeu o
inverso: o tema é que tornou impossível o orador. Identidade, língua, marcas
culturais: são três fantasmas partilhando a mesma cama. E quando se entra no
quarto, acreditando surpreendê-los em flagrante delito eis que descobrimos que
não há cama, nem quarto, nem amantes.
Corremos o risco de somar aos três anunciados fantasmas um outro
inesperado. Esse outro fantasma sou eu mesmo. Venho de longe, para muitos de
vocês sou um escritor desconhecido. Sou moçambicano e Moçambique é do domínio
das miragens. Tenho uma pronúncia que, aos ouvidos da maioria dos brasileiros,
me atira para a identidade de um “português”.
O mais fácil, pensei eu, seria começar por desvanecer o meu
estatuto fantasmagórico. E é isso que tentarei fazer. Irei falar não de mim,
mas da língua portuguesa em Moçambique, da errante identidade de uma literatura
moçambicana e de marcas culturais brasileiras em sucessivas gerações de
escritores moçambicanos.
O centro da minha intervenção, porém, será a questão da
identidade. Ou das identidades no plural. Escolhi falar deste tópico
exactamente porque as identidades não são faláveis. Elas são esquivas,
fortuitas, inventadas. As identidades não são nomes. São verbos que se enunciam
sempre no futuro. Recorro a um provérbio dos macuas, um povo do norte de
Moçambique. E o provérbio diz assim:
Não fales sobre Deus porque Deus é como o ovo. Se apertas muito
ele quebra; se não agarras bem ele cai.
A mesma condição volátil contamina o tema da nossa conversa de
hoje.
A alguns de vocês terão visto o filme de Vítor Lopes sobre a
Língua Portuguesa onde aparecem João Ubaldo, José Saramago, Martinho da Vila e
outros. Quando dei o depoimento para este filme eu estava na Ilha da Inhaca,
onde durante anos trabalhei como biólogo na Estação de Biologia da Universidade
Eduardo Mondlane. (não só escritor, também sou uma pessoa séria...) Pois nessa
ilha passou-se o seguinte (fala de improviso):
Certa vez eu estava no cais de saída para a capital quando vi
chegar, num outro barco, que eu conhecera em Nápoles, um apaixonado pela África
que vinha pela primeira vez a Moçambique. Ele não sabia uma palavra de português
e viajava por sua conta para a ilha de Inhaca, durante a minha ausência. Na
despedida, ele a si mesmo se consolou: “pois nós os italianos falamos muito com
as mãos, vocês aqui também usam muito gesto, eu lá me entenderei...”
O homem ficou por lá uma semana, regressou a Maputo, feliz e
gratificado por ter conseguido um entendimento pleno. Mais tarde, eu lá fui
para a ilha, para a Estação de Biologia onde eu trabalhava. Cruzei com um velho
funcionário, perseguido pelo italiano e, logo, veio a inesperada observação:
“esse homem não tem juízo completo”. O que se passara? Pois, logo numa primeira
conversa um grupo de ilhéus quis saber do italiano se ele tinha filhos. A
resposta afirmativa foi reforçada com gestos para assinalar os tamanhos de seus
rebentos. E aqui sucedeu o mal entendido. O italiano marcou a altura dos filhos
com um gesto que, ali, na ilha era quase uma obscenidade. Qualquer europeu
fazia o mesmo: estenderia a mão, paralela ao chão. Mas nos códigos locais, a
mão plana, bem aberta, indica um objecto inanimado, um morto sem ligação
afectiva. A mão curva, fechada e virada para cima indica o tamanho de quem está
crescendo, de uma criança em trânsito para ser adulto. Que raio de pai era
aquele europeu que falava assim dos seus próprios filhos?
Recordei-me deste episódio porque a identidade é como o tamanho
da criança: está em trânsito, não pode ser capturada em gesto, nem em palavras.
Afinal, na pequena história que evoquei todos estão com a razão.
Está certo o gesto do italiano. Na lógica do meu amigo europeu, a pessoa só tem
tamanho quando se converte em medida, número e risco na fita métrica. Mas a
questão, para os ilhéus da Inhaca, é que um menino não é ainda uma pessoa. É um
indivíduo em trânsito para a idade adulta.
Na cosmogonia dos moçambicanos ninguém nasce pessoa. Vamo-nos
tornando gente à medida que somos iniciados por experiências e vivências.
É por isso que a criança pode ir mudando de nome, à medida que
cresce e cumpre rituais de passagem. O menino pequeno, quando falece, é
enterrado junto ao rio. Só depois de receber o seu segundo nome é que pode ser
sepultado em chão firme. É esse o nosso destino: nascemos água, vamos a caminho
de sermos terra.
Aqui há algo que é anterior às línguas, e que são as lógicas com
que vemos o mundo e o modo como damos nome às coisas e aos seres. No mundo
rural africano, a identidade é definida de forma aberta, transitável e
transitória. Alguém pode ser pessoa de dia, árvore de tarde e bicho de noite.
Os mortos podem usar a voz e o corpo dos vivos, a vida está disponível para ser
vivida pelos mortos.
Chegamos, assim, a uma primeira constatação: as identidades são
transitórias e precárias. O problema é que elas são quase sempre vividas como
definitivas e eternas. Mais grave ainda é que a identidade toma-se a si mesma
muito a sério. E atira-nos para a tentação de nos definirmos como essências,
entidades puras, certezas inabaláveis que justificam guerras e cruzadas.
Não sou um especialista para falar do tema que escolhi. Sou sim,
uma vítima predilecta dos equívocos gerados em redor da identidade. Já explico.
Na nossa vida quotidiana os dados de identificação são facilmente sumarizados e
constam de quase todos os formulários burocráticos. Esses dados são: o nome, o
sexo, a nacionalidade, a raça, a língua, a idade, o estado civil. Seguiremos
agora para cada uma dessas categorias e veremos como todas podem suscitar
curiosos embaraços. Comecemos pelo nome.
O nome
Aos dois anos de idade tive a infeliz idéia de reclamar um novo
nome para mim mesmo. Contra o António de nascença – eu inventei um outro nome:
Mia. Rebaptizei-me com esse nome em celebração com a minha vivência com os
gatos da vizinhança. Não é que eu gostava de gatos. Eu acreditava ser gato. Eu
não pensava: eu era um gato.
Veremos, mais tarde, que tive que pagar por esse meu rebaptismo.
O meu nome, esse que me confere a primeira identidade, tem-me causado um sem
número de penosos mal-entendidos. Já li, por exemplo, uma tese argumentando que
“Mia” é uma palavra africana bantu com significados mágico-religiosos.
Mais grave ainda é a forma com a tribo dos amantes de gatos me
têm adoptado como membro incondicional. Certa vez, numa cidade de Portugal onde
eu lançava um livro, uma simpática senhora me chamou e disse:
- Venha à minha livraria que eu quero que conheça o Gil Vicente.
Lá fui intimidado com a solenidade do encontro. Alguém que tinha
o nome do célebre dramaturgo lusitano seria certamente pessoa de valor. Entrei
na livraria, não havia ninguém. Foi quando a proprietária do estabelecimento se
aproximou da caixa registadora e apontou para um enorme gato. E anunciou com ar
formal:
- Gil Vicente, este é o escritor de que falei e que é um
apaixonado por gatos.
De imediato, já ela apontava uma câmara fotográfica para
eternizar em imagem o nosso encontro. Sugeriu para que me chegasse mais perto
do bicho e, no momento em que tentei fazer-lhe uma carícia, o gato deu-me uma
vigorosa dentada. Foi assim que surgi na fotografia, exibindo um esgar de dor e
espanto perante os dentes felinos que se cravavam no meu braço.
Até hoje, guardo a cicatriz desta dentada. A dona do
estabelecimento tornou-se uma amiga. E ganhei o orgulho de poder dizer que fui
mordido por Gil Vicente.
O sexo
Não é que eu possua, devo dizer à partida, dúvidas de identidade
neste capítulo. O problema são os mal-entendidos que decorrem do nome “Mia” que
se acredita ser um nome feminino. Há tempos, na Argentina, o protocolo do
Ministério da Educação que me tinha convidado, pediu para que esperasse na
recepção do hotel pois tinham que mudar algo na acomodação prevista. Soube,
depois, que me haviam reservado o chamado “quarto-cor-de-rosa”.
Numa visita como jornalista a Cuba, nos anos oitenta, recebi uma
prenda do Presidente Fidel. Era um pequeno baú de madeira, que seguiu no porão.
Estávamos em guerra, não tínhamos nada em Moçambique. A curiosidade
perseguiu-me durante toda a viagem de regresso: o que se escondia no caixote?
Chegado a casa não podia ser maior a minha desilusão: o baú continha eram
vestidos, brincos, colares. O protocolo cubano tinha sido ludibriado pelo tom
feminino do meu nome. Guardo a certeza de ter sido o único homem a quem Fidel
Castro ofereceu uma saia.
A raça e a etnia
Nos lugares chamados de “civilizados” ninguém pergunta a que
grupo étnico pertencemos. Mas quando se fala sobre África já se acredita que é
importante discriminar a pertença étnica. África para uma certa facilidade
televisiva explica-se facilmente pelas tribos e etnias.
A este propósito quero lembrar a história do missionário Henri
Junod que nos finais do século 19 saiu da Suíça Francesa para vir pregar em
Moçambique. Ao contrário das grandes potências europeias, a Suíça não tinha
colónias em África. A Igreja Livre de Lausane a que pertencia Junod só podia
sobreviver se encontrasse nos territórios africanos uma espécie de terra de
ninguém. Junod chegou a Moçambique e deparou com um conjunto de clãs dispersos
que se nomeavam a si mesmos em função da família dominante: havia os Kossas, os
Bilas, os Maluleques, os Matsolo, etc. O que Junod fez foi propor uma espécie
de língua franca a partir de variantes dialectais destes grupos. Fixou a
língua, codificou-a, organizou uma gramática e publicou um dicionário. Deu a
essa língua o nome de Tsonga. Depois sugeriu que os povos do Sul de Moçambique
fossem igualmente denominados por Tsongas. Encontrou uma generalizada
resistência. Tsonga era o nome que os invasores sul-africanos zulus davam aos
moçambicanos escravizados. Era um termo depreciativo. Mas o termo ficou e foi
abraçado por elites locais que estavam em conflito com a administração colonial
portuguesa. Ocorreu assim uma espécie de negociação entre as chefaturas negras
e os missionários suíços. Os religiosos suíços outorgavam uma identidade
etno-linguística e recebiam em troca, a legitimidade para a sua presença em
África. Eles faziam da língua aquilo que outros fizeram da terra.
Ainda hoje, mais de cem anos passados, uma grande parte dos
moçambicanos oficialmente designados como tsongas não se reconhecem nesse nome.
Mas a verdade é que cada vez há mais gente que não apenas se aceita como tsonga
mas acredita que essa identidade sempre existiu e que a sua etnia é tão antiga
quanto a Humanidade.
Este é um exemplo claro e recente de como se fabricam
identidades. Eu vivi esta revisitação histórica na companhia de um amigo meu,
que está na Suíça fazendo o seu doutoramento em filosofia.
Historio de Severino Nguenha. Ele me dizia em Genebra: quando
parti eu sabia que era Moçambicano. Aqui na Europa eu aprendi que era africano.
E como africano ele sentia que devia escolher um tema africano para a sua tese.
Mas ele não sabia o que escolher. Foi então que lhe sugeriram que visitasse um
missionário de noventa anos, de nome Clerg, que era dos poucos discípulos de
Henri Junod que ainda sobreviva. Nguenha nessa tarde mesmo foi a casa do velho
suíço, bateu à porta e escutou a voz cansada perguntando num francês rouco:
- Quem é?
- Sou um estudante que veio de Moçambique.
Então, Severino Nguenha escutou passos arrastando-se pelo
corredor e se arrepiou quando ouviu a pergunta:
- I wena mani? (quem é ?)
Clerk perguntava quem era, falando em tsanva. E o moçambicano
respondeu:
- Mina ni Nguonha. (Sou o Nguenha)
Então, retorquiu o suíço, então és um dos nossos, entra que esta
é casa dos tsongas.
Severino Nguenha, um moçambicano negro de quarenta anos de idade aprendeu naquele dia que era um tsonga, da mesma tribo de um suíço branco com mais de noventa anos.
Severino Nguenha, um moçambicano negro de quarenta anos de idade aprendeu naquele dia que era um tsonga, da mesma tribo de um suíço branco com mais de noventa anos.
A
nacionalidade
No tempo da infância, sempre que regressava das brincadeiras no
manguezal, quem me recebia em casa era o baiano Dorival Caymmi. As canções do
mar se repetiam infinitamente no velho toca-discos
e eu escutava
inebriado como era doce morrer no mar. E para mim já era claro: o que era doce
não era morrer mas o modo de dizer essa morte. Esse sotaque adocicado de uma língua
que era minha e que eu desconhecia me revelou um novo litoral na minha alma.
Severino Nguenha viu abrir as portas de identidade tsonga pela mão de um suíço.
A porta para uma outra condição de nação foi-me aberta pela canção de Caymmi.
Esse deslumbramento cresceu quando, mais tarde, se voltou a acender com os
poetas e os cantores brasileiros. Eu não apenas amava essa outra pátria sem
contornos. Eu me tinha convertido num brasileiro. E sempre que visito o Brasil
renovo essa cidadania de uma nação que inventei.
Amin Malouf escreveu um livro sobre aquilo que chamou de
“identidades assassinas”. Em resposta, necessitamos nós de assassinar a
identidade singular e redutora a que nos querem obrigar. Necessitamos assumir a
nossa condição errante, de eternos contrabandistas de culturas. Há que ter
raiz, sim. Mas quem tem demasiada raiz não chega nunca a ganhar asas.
Lembro um episódio que me aconteceu nos anos oitenta numa
pequena cidade chamada Malmo, no Sul da Suécia. Eu trabalhava na adaptação
teatral de textos meus quando uma das actrizes suecas organizou um jantar para
que eu conhecesse o seu professor de lambada, um brasileiro acabado de chegar à
Escandinávia. Esse natural do Rio de Janeiro abrira uma pequena escola de
danças brasileiras. A actriz estava encantada com o charme do professor carioca
e queria saber se ele poderia participar na peça teatral. Quando o brasileiro
entrou na sala e se apresentou, verifiquei com espanto que falava comigo em
italiano. Pensei, primeiro, que ele não soubesse o que era Moçambique e que
língua seria a minha. Mas não. O dito dançarino era italiano, nunca tinha
visitado o Brasil e não sabia uma palavra de português. Fazia-se passar por
brasileiro por razões de marketing de imagem. Entendemo-nos, à custa do meu
pobre italiano, perante o olhar encantado da actriz sueca que nos imaginava
falando em português. Embaraçado, o falso professor desculpou-se:
- Por favor, me entenda, não tenho outro emprego.
O que podia eu fazer senão entender? Já o italiano se despedia
quando regressou atrás e me segredou:
- E eu posso garantir-lhe uma coisa, quando danço lambada eu
deixo mesmo de ser italiano.
Quando mais tarde a actriz sueca me perguntou se havia gostado
do seu brasileiro, eu
respondi:
respondi:
- Não há lugar neste mundo em que não se encontre um pedaço do
Brasil.
Como podem ver, não apenas vou sendo abusivamente brasileiro
como até já conferi a nacionalidade brasileira a europeus em estado de aflição. Espero que nenhum agente da polícia de migração
esteja presente nesta sala.
No capítulo da nacionalidade e de como a nação define
identidades farei ainda referência a alguém que todos vocês conhecem. Todos
descobrimos os nossos mestres na arte de pular fronteiras identitárias. Para
mim o maior mestre foi um brasileiro chamado João Guimarães Rosa.
A
identidade da escrita
Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial,
combati pela Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao
capitalismo, da revolução a uma guerra civil que demorou 16 anos e fez um
milhão de mortos. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e
outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está
nascendo. A minha condição sempre foi a de criatura de fronteira. As duas
partes de mim exigiam um medium, um
tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre mundos
aparentemente distantes. O que creio que todos carecemos é de um passaporte (ou
se quisermos esse password) para emigrarmos de nós, saltarmos a fronteira
daquilo que alguém chamou de identidade pessoal.
Quando li pela primeira vez Guimarães Rosa experimentei uma
sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da
minha infância. Perante o texto eu não simplesmente lia: eu ouvia vozes
antigas. Os livros de Rosa me atiravam para fora da escrita como se, de
repente, eu me tivesse convertido num analfabeto selectivo. Para entrar
naqueles textos eu devia fazer uso de um outro acto que não é “ler” mas que
pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência
de uma poesia que me fazia sair do mundo, que me fazia inexistir. Aquela era
uma linguagem em estado de transe, que se deixava possuir como os mediuns das
cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que
autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem.
Exactamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele
prepara a possessão pelos espíritos. O dançarino só dança para criar o momento
divino em que ele emigra do seu próprio corpo. O italiano da lambada também sabia disto.
Os contadores de histórias do meu país têm que proceder a um
ritual quando terminam a narração. Tem que “fechar” a história. “Fechar” a
história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se
que os relatos históricos são retirados de uma caixa que nos foi deixada por
Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final da cerimónia,
o narrador volta-se para a história — como se a história fosse um personagem e
diz-lhe: “Volta para casa de Guambe e Dzavane”. É assim que a história volta a
ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que
assiste fica doente, contaminada por uma enfermidade que se chama a doença de
sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos
doentes, nós que o escutamos. E nos apaixonamos por essa doença, esse
encantamento, essa aptidão para a fantasia.
Volto à categoria da identidade. E vou falar na questão do
idioma.
A língua
Na categoria do idioma gostaria de me demorar um pouco mais.
Afinal, a língua é um dos temas de cartaz deste Fórum. E a pergunta que seria
preciso fazer não tem a ver comigo mas com o meu país, esse que confere
identidade colectiva a 17 milhões de habitantes. E a pergunta é esta: será que
Moçambique é um país de língua portuguesa?
E aqui gostaria de fazer um grande parêntesis. Nas zonas rurais
onde trabalho existe uma curiosa maneira de responder ás perguntas formuladas
por um estranho. Sobretudo se essas questões solicitam a cruel dicotomia do
“sim” e do “não”. Resolve-se da seguinte maneira: responde-se sempre sim. O
“não” simplesmente não se diz.
Esta forma de retórica (ou melhor esta ausência de retórica)
traduz a nossa condição geográfica: Moçambique já é Oriente. Não negar é uma
educação. Mas esta elegância de trato cria, por vezes, problemas aos que
necessitam de respostas claras e concisas. É o meu caso quando chego a uma zona
litoral e necessito organizar o meu trabalho. À minha pergunta:
- A maré está a subir?
A resposta já aconteceu assim:
- Está a subir, sim senhor, mas já começou a descer há mais de
duas horas.
Uma outra vez, tendo por missão identificar a fauna numa
floresta, perguntei a um velho que me acompanhava:
- Isto que está cantar é um pássaro?
- É, sim.
- E como se chama este pássaro ?, quis eu saber.
- Bom este pássaro, nós aqui em Niassa não chamamos bem-bem
pássaro. Chamamos de sapo.
Num balanço da aplicação do lema de governação “por um futuro
melhor” a Televisão de Moçambique fez um inquérito popular. A pergunta era:
“sente que a sua vida está a melhorar?” Um cidadão respondeu assim:
- “Está melhorar, sim senhor. Mas está a melhorar muito mal
Evoco estes episódios para regressar à questão inicial que é:
Moçambique é um país lusófono? Tomando a lógica rural eu responderia, pronto e
ligeiro: é, sim senhor. Mas sei que há outras lógicas que mandariam que eu
dissesse: não, Moçambique não é
um país lusófono.
Explico: fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava
na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua
portuguesa que os 500 anos de colonização. Em 1975, ano da Independência
Nacional, mais de 60 por cento dos moçambicanos não falavam português. Trinta
anos depois existem ainda 40 por cento de moçambicanos que não falam português.
Mesmos os que tem essa competência fazem-no como segunda língua. Hoje cerca de
7 por cento dos moçambicanos tem o português como língua materna. Nas cidades,
porém, este número já é de quase 20 por cento.
O meu país é, assim, um território de muitas nações e muitas
línguas (mais de vinte diferentes idiomas). O idioma português é a língua de
uma dessas nações — um território cultural inventado por negros urbanos,
mestiços, indianos e brancos. Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse
grupo ocupa lugares chaves nos destinos políticos e na definição daquilo que se
entende por moçambicanidade. A língua portuguesa não é a ainda língua de
Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da moçambicanidade.
Comecei a minha intervenção com alguns dados da minha meninice.
O que tem a questão da língua a ver com estas lembranças? Para manter
residência na infância necessito de uma língua em estado de infância. Essa é a
minha aposta quando escrevo. Tenho a meu favor o facto de Moçambique ser ele
próprio um lugar em infância, uma nação em flagrante invenção de si mesma e da
sua língua de identidade. Estranha coincidência: a minha pátria é-me
contemporânea. Fui nascendo com ela, ela está nascendo comigo. Eu e a minha
terra somos da mesma geração.
A minha língua portuguesa, repito a minha língua portuguesa, é a
pátria que estou inventando para mim. Essa língua nómada é viagem viajada,
namoradeira de outras vozes e outros tempos. O importante não é tanto a língua,
nem sequer o quanto ela nos é materna. Mais importante é essa outra língua que
falamos mesmo antes de nascermos. Nesse registo está a porta e o passaporte em
que todos nos fazemos humanos, fabricadores da palavra e, com igual mestria,
criadores de infinitas identidades.
Conclusão
— identidades fugidias
Tenho ao que parece a raça errada, o nome errado, o sexo errado,
e aqui no Brasil tenho a pronúncia errada. A verdade é que, para mim, a escrita
me ajudou a dissolver esses erros. Foi a aceitação da poesia como uma lógica
para entender o mundo que me deu a solução. E me fez criar um modo de ser outro
e outros, e me deu uma forma de desembarcar em novas entidades. Quando escrevo
sobre uma mulher eu me converto em mulher, quando escrevo sobre uma criança eu
sou uma criança. Essa liberdade contraria a ideia comum que nascemos para ter
uma única e singular identidade. Alguns insistem que a identidade pede pureza e
essência. A única maneira de sermos puros, porém, é sermos híbridos. A verdade
é que só seremos um se formos muitos. E só seremos felizes se abraçarmos
identidades plurais, capazes de reinventarem e se misturarem em imprevisíveis
simbioses e combinações.
Ensinaram-nos a ter medo da indefinição e da imprevisão. Mas nós
brasileiros e moçambicanos construímos sociedades em que a previsão não passa
de uma falível contingência. A força do oculto e do não nomeável é muito forte.
Devemos tirar partido disso: inventemos para nós a identidade que nos apetecer.
E façamo-lo não porque seja politicamente correcto mas porque nos dá prazer
sermos o que somos, mesmo que não saibamos exactamente o que isso é. Só
poderemos sentir prazer se criarmos um universo de diferença num mundo em que o
futuro se está já a escrever apenas em inglês.
Aquilo que nos torna próximos — a nós falantes do português no
Brasil, em Portugal e em África — não é apenas a língua mas componentes
culturais e, sobretudo, religiosos. Fomos moldados e moldamos percepções do
mundo que resultaram de migrações e transculturações antigas. Os nossos santos
são os mesmos. Os nossos santos protectores — mesmo que neles não acreditemos —
poderiam sentar-se nesta sala, no Rio, com o mesmo à vontade que manteriam em
Lisboa, Maputo ou Luanda.
O que estaremos discutindo nestes dias não são questões
académicas. O que está em debate é a possibilidade de sermos construtores de
identidades que, tal como a criança da ilha, não podem ser medidas, nem
reduzidas a um nome ou a um gesto. Estaremos falando, muito simplesmente, de
identidades, línguas e marcas culturais que nos tornem mais felizes, mais
humanos e mais solidários.
Esta é a derradeira história e, de novo, relembro algo ocorrido
na EB da Inhaca. Numa noite escura, eu e os meus colegas acabávamos de jantar
na varanda da Estação quando escutamos tambores e sinais de que haveria,
algures, uma festa. Decidimos ver o que se passava. Quando chegamos deparamos
não exactamente com uma festa mas com uma cerimónia de agradecimento pela
chegada das chuvas. Ao redor de uma fogueira havia só mulheres de uma certa
idade.
Receberam-nos com a maior das simpatias, foram buscar cadeiras
(os homens não se sentam no chão) e serviram-nos de ngovo, uma bebida
fermentada. Considerei que seria de bom tom usar da palavra para agradecer a
hospitalidade. Eu era o único branco entre os meus colegas e era o que menos
falava o xironga, a língua local. Quando nos dirigimos ao centro do pátio, as
mulheres fizeram silêncio e esperaram que começássemos a falar. O meu colega
porém, foi mandado calar logo nas primeiras palavras: Eh, Eh, se é para dizerem
quem são não queremos que falem, queremos que dancem. Vocês vão dizer quem são
e de onde vieram através da dança.
Entrei em pânico. Eu não danço coisa nenhuma e essa inaptidão é
tão funda que eu já imaginei que eu apenas escrevo porque não sei dançar. Mas o
problema é que os meus colegas dançavam qualquer coisa irreconhecível, uma
mistura de Michael Jackson e Zeca Pagodinho. As mulheres, ante o patético
espectáculo, levantaram os braços e clamaram: podem parar que nós não sabemos
que país será esse onde se dança assim.
Esse país onde se inventa uma identidade dançada é o mesmo onde
o italiano continua ensinando lambada, a mesma nação onde Guimarães Rosa vai
tornando as palavras dançáveis. E como diz o provérbio moçambicano: quem dança
não é o que levanta poeira; quem dança é aquele que inventa o seu próprio chão.
E muito obrigado.
COUTO, Mia. “Três fantasmas mudos para um orador luso-afónico “. In: VALENTE, André (ORG.). Língua portuguesa e identidade. Rio de Janeiro: Caetés, 2008. pp. 11-22